Meu nome é Sílvia e habito em Roma, numa dómus no alto do monte Palatino. Fui a segunda filha de 5 irmãos, e a única moça. A minha família de nascimento é tradicional e influente ainda que não faça parte das famílias patrícias que fundaram a Cidade.
Já a família de meu marido, que agora é a minha, é patrícia e uma das mais antigas de Roma. Por isso mesmo, eu não poderia ter casado com Fábio de outra forma que não fosse por confarreatio, o rito de casamento mais solene, mais antigo, indissolúvel.
Para nós, nada de coemptio ( uma nobre não pode ser comprada nem mesmo de forma apenas simbólica) e muito menos de usus que pouco mais é do que uma forma de concubinagem. Não, o nosso casamento teve direito ao sacrifício da ovelha branca sobre cuja pele nos sentámos, e foi na presença das 10 testemunhas requeridas e do flamen dialis, sacerdote de Júpiter e do Pontifex Maximus . Foi com a bênção deste que , quando Fábio perguntou o meu nome, eu pronunciei a fórmula sagrada: ubi tu Gaius, ibi ego Gaia – onde tu te chamares Gaio, eu serei Gaia. Partilhámos então um pouco de água, uns grãos de sal e um pedaço do panis farreus, feito com farinha de espelta. E as nossas vidas ficaram para sempre unidas.
Há algum tempo Tínis, a minha serva favorita que nasceu e cresceu no Egipto, perguntou-me se meu marido e eu nos amávamos. Não gostasse eu tanto dela e não soubesse da liberdade de escolha de que tantas mulheres dispõem na sua terra e que leva a uma importância dada aos sentimentos que eu considero exagerada, e teria pensado que ela pretendia ofender-me. Amor? Sei lá o que isso é, meus pais educaram-me suficientemente bem para que pensamentos desses não venham perturbar-me. Honramo-nos e respeitamo-nos. Para Fábio são importantes a minha saúde e o meu bem estar, ouve-me quando preciso de falar-lhe, dá-me tudo quanto desejo, não me força a nada nem sequer a uma maior intimidade quando a não desejo. Para mim são também importantes a sua saúde e o seu bem estar, valorizo a sua carreira e a sua reputação, orgulho-me de pertencer à sua família e agradeço aos deuses por ter-lhe dado filhos e por ele ser um excelente pai.. Com isto, que é muito mais do que a maioria das minhas amigas tem, sou feliz. Mais do que isto, não sei o que possa ser nem sei mesmo se quereria. Não gosto de desordem nem mesmo nos afectos ou nos pensamentos.
Acordei há pouco e, lançando uma simples capa sobre a roupa com que dormi, fui à cozinha verificar se tudo estava preparado para o ientaculum antes que Fábio chame o barbeiro e proceda à toilette para começar a receber condignamente as saudações dos clientes que já se acumulam no atrium.
Sobre a mesa de madeira na própria cozinha, já se encontram um pouco de pão untado com azeite e alho, alguns ovos quentes, mel, leite de cabra e figos secos.
Todos nós cá em casa comemos um pouco de tudo mas em pequena quantidade. O meu filho mais velho aparece acompanhado pelo seu perceptor, Temophilus, um grego, evidentemente, que nos custou caríssimo mas valeu a pena pois assegurará o seu interesse pelo estudo e a qualidade dos seus conhecimentos.
Ter um perceptor não o dispensa de ir à escola pública, claro, como é dever de todo o futuro cidadão responsável pois, por muito profundos e úteis que sejam os conhecimentos que Termophilus lhe transmita, não pode nem deve nunca esquecer-se de que é Romano e de que são os deuses e os costumes romanos bem como a língua de seus antepassados, o Latim, que deverá sempre honrar em primeiro lugar.
Mal tenho tempo de lhe passar a mão pelos caracóis, sob o olhar reprovador de Termophilus que o acha demasiado crescido para isso, e já ambos partem para o fórum, a caminho da escola. Fábio e eu «debicamos» um pouco de figos com mel , trocamos algumas palavras, damos conta um ao outro dos nossos planos para hoje e ele retira-se para que o vistam e o barbeiem antes de ir distribuir a espórtula pela legião de clientes que o acompanhará até às portas do Senado.
Eu dou rapidamente as minhas ordens para o jantar dessa noite, ainda que Josefo, o cozinheiro hebreu tão fantástico que se julga insubstituível, acabe sempre por fazer o que muito bem entende. E eu vou fazendo de conta que não dou por nada e vou pactuando porque sei bem a sorte que temos em contar com o seu saber e arte e também sei, por experiência, quanto é perigoso indispô-lo e como a confecção dos seus habituais manjares se ressentirá do dos seus amuos.
Agora preciso de tratar da minha toilette, por fim. Não posso sujeitar-me, e à minha família, ao vexame de vir alguém visitar-me e eu não estar apresentável como matrona que se preze.
Chamo as minhas servas pessoais, comandadas por Syra, uma egípcia que todas as amigas me invejam pois cuida e arranja o meu cabelo como ninguém. Pergunto muitas vezes a mim mesma se será justo manter esta sociedade baseada no trabalho escravo. Os pensadores que mais aprecio, filósofos estóicos, sempre se têm mostrado adversos a este sistema e eu concordo com eles. Mas meu marido diz que Roma cairia se os escravos fossem todos libertos… De qualquer modo, nem ele nem eu conseguimos sentir qualquer afinidade ou respeito por quem maltrata os servos da sua casa que, até no próprio espírito das leis mais antigas, deveriam ser considerados familiares. Em nossa casa são isso mesmo e Syra e Tínis sabem mais de mim, dos meus sentimentos, das vitórias e perdas da minha vida, do que penso e sinto, do que as outras matronas que visito ou me visitam. È nos braços delas que por vezes choro, é com elas que rio e canto quando estou feliz.
Tenho já água perfumada preparada para me lavar ligeiramente já que esta tarde passarei pelas termas durante as horas destinadas às mulheres e aí os processos de higiene serão mais complexos. Depois ajudam-me a enrolar o strophium em torno dos seios, a guaina e, por cima, a túnica. Calço as minhas sandálias e finalmente envergo a stola. Não vou necessitar de manto, não conto sair esta manhã.
Se eu fosse totalmente tradicional, passaria a manhã rodeada das minhas servas fiando e tecendo lã e cuidando de confeccionar o vestuário de toda a família. Essa é considerada a tarefa mais honrada e mais nobre de uma senhora casada e orgulhosa da honra e do prestígio da sua família. Mas eu tenho passado os últimos tempos a cuidar disso e já todos nesta casa, incluindo os servos, têm roupa que chegue e sobeje. Por isso, hoje, será um dia inteiramente dedicado ao lazer.
Syra prepara o meu penteado, quase uma obra de arquitectura que será motivo de conversa e inveja entre todas as minhas amigas.
Passa, de seguida à maquilhagem, que se quer refinada . Cinza, açafrão e antimónio para as pálpebras e pestanas, pasta de pétalas de rosa para as faces, suco de papoila para os lábios.
Faltam apenas as jóias. Hoje escolho um colar de âmbar e uns brincos de esmeraldas.
Vêm dizer-me que chegaram duas amigas, Sílvia e Flávia. Mando colocar uma mesinha e bancos no atrium, justo à piscina (1) e, sobre a mesa, figos, doces de pasta de amêndoa, pão doce e vinho muito aguado pois alguns maridos têm o hábito de cheirar a boca de suas mulheres quando chegam a casa para ver se desrespeitaram a lei que proíbe as mulheres de beberem álcool…
Conversaremos sobre nossos maridos, as suas carreiras, e aproveitaremos para ir sabendo coscuvilhices das famílias que têm jovens da idade dos nossos filhos, de forma a podermos saber que casamento patrocinar no futuro.
Depois iremos todas às Termas, esta tarde estão abertas às Mulheres.
(Continua)
(1) - a piscina, em Roma Antiga, não era um sítio de lazer, para nadar. Era um pequeno lago artificial onde se criavam peixes para cozinhar (daí o nome: piscis deu piscina).
Já a família de meu marido, que agora é a minha, é patrícia e uma das mais antigas de Roma. Por isso mesmo, eu não poderia ter casado com Fábio de outra forma que não fosse por confarreatio, o rito de casamento mais solene, mais antigo, indissolúvel.
Para nós, nada de coemptio ( uma nobre não pode ser comprada nem mesmo de forma apenas simbólica) e muito menos de usus que pouco mais é do que uma forma de concubinagem. Não, o nosso casamento teve direito ao sacrifício da ovelha branca sobre cuja pele nos sentámos, e foi na presença das 10 testemunhas requeridas e do flamen dialis, sacerdote de Júpiter e do Pontifex Maximus . Foi com a bênção deste que , quando Fábio perguntou o meu nome, eu pronunciei a fórmula sagrada: ubi tu Gaius, ibi ego Gaia – onde tu te chamares Gaio, eu serei Gaia. Partilhámos então um pouco de água, uns grãos de sal e um pedaço do panis farreus, feito com farinha de espelta. E as nossas vidas ficaram para sempre unidas.
Há algum tempo Tínis, a minha serva favorita que nasceu e cresceu no Egipto, perguntou-me se meu marido e eu nos amávamos. Não gostasse eu tanto dela e não soubesse da liberdade de escolha de que tantas mulheres dispõem na sua terra e que leva a uma importância dada aos sentimentos que eu considero exagerada, e teria pensado que ela pretendia ofender-me. Amor? Sei lá o que isso é, meus pais educaram-me suficientemente bem para que pensamentos desses não venham perturbar-me. Honramo-nos e respeitamo-nos. Para Fábio são importantes a minha saúde e o meu bem estar, ouve-me quando preciso de falar-lhe, dá-me tudo quanto desejo, não me força a nada nem sequer a uma maior intimidade quando a não desejo. Para mim são também importantes a sua saúde e o seu bem estar, valorizo a sua carreira e a sua reputação, orgulho-me de pertencer à sua família e agradeço aos deuses por ter-lhe dado filhos e por ele ser um excelente pai.. Com isto, que é muito mais do que a maioria das minhas amigas tem, sou feliz. Mais do que isto, não sei o que possa ser nem sei mesmo se quereria. Não gosto de desordem nem mesmo nos afectos ou nos pensamentos.
Acordei há pouco e, lançando uma simples capa sobre a roupa com que dormi, fui à cozinha verificar se tudo estava preparado para o ientaculum antes que Fábio chame o barbeiro e proceda à toilette para começar a receber condignamente as saudações dos clientes que já se acumulam no atrium.
Sobre a mesa de madeira na própria cozinha, já se encontram um pouco de pão untado com azeite e alho, alguns ovos quentes, mel, leite de cabra e figos secos.
Todos nós cá em casa comemos um pouco de tudo mas em pequena quantidade. O meu filho mais velho aparece acompanhado pelo seu perceptor, Temophilus, um grego, evidentemente, que nos custou caríssimo mas valeu a pena pois assegurará o seu interesse pelo estudo e a qualidade dos seus conhecimentos.
Ter um perceptor não o dispensa de ir à escola pública, claro, como é dever de todo o futuro cidadão responsável pois, por muito profundos e úteis que sejam os conhecimentos que Termophilus lhe transmita, não pode nem deve nunca esquecer-se de que é Romano e de que são os deuses e os costumes romanos bem como a língua de seus antepassados, o Latim, que deverá sempre honrar em primeiro lugar.
Mal tenho tempo de lhe passar a mão pelos caracóis, sob o olhar reprovador de Termophilus que o acha demasiado crescido para isso, e já ambos partem para o fórum, a caminho da escola. Fábio e eu «debicamos» um pouco de figos com mel , trocamos algumas palavras, damos conta um ao outro dos nossos planos para hoje e ele retira-se para que o vistam e o barbeiem antes de ir distribuir a espórtula pela legião de clientes que o acompanhará até às portas do Senado.
Eu dou rapidamente as minhas ordens para o jantar dessa noite, ainda que Josefo, o cozinheiro hebreu tão fantástico que se julga insubstituível, acabe sempre por fazer o que muito bem entende. E eu vou fazendo de conta que não dou por nada e vou pactuando porque sei bem a sorte que temos em contar com o seu saber e arte e também sei, por experiência, quanto é perigoso indispô-lo e como a confecção dos seus habituais manjares se ressentirá do dos seus amuos.
Agora preciso de tratar da minha toilette, por fim. Não posso sujeitar-me, e à minha família, ao vexame de vir alguém visitar-me e eu não estar apresentável como matrona que se preze.
Chamo as minhas servas pessoais, comandadas por Syra, uma egípcia que todas as amigas me invejam pois cuida e arranja o meu cabelo como ninguém. Pergunto muitas vezes a mim mesma se será justo manter esta sociedade baseada no trabalho escravo. Os pensadores que mais aprecio, filósofos estóicos, sempre se têm mostrado adversos a este sistema e eu concordo com eles. Mas meu marido diz que Roma cairia se os escravos fossem todos libertos… De qualquer modo, nem ele nem eu conseguimos sentir qualquer afinidade ou respeito por quem maltrata os servos da sua casa que, até no próprio espírito das leis mais antigas, deveriam ser considerados familiares. Em nossa casa são isso mesmo e Syra e Tínis sabem mais de mim, dos meus sentimentos, das vitórias e perdas da minha vida, do que penso e sinto, do que as outras matronas que visito ou me visitam. È nos braços delas que por vezes choro, é com elas que rio e canto quando estou feliz.
Tenho já água perfumada preparada para me lavar ligeiramente já que esta tarde passarei pelas termas durante as horas destinadas às mulheres e aí os processos de higiene serão mais complexos. Depois ajudam-me a enrolar o strophium em torno dos seios, a guaina e, por cima, a túnica. Calço as minhas sandálias e finalmente envergo a stola. Não vou necessitar de manto, não conto sair esta manhã.
Se eu fosse totalmente tradicional, passaria a manhã rodeada das minhas servas fiando e tecendo lã e cuidando de confeccionar o vestuário de toda a família. Essa é considerada a tarefa mais honrada e mais nobre de uma senhora casada e orgulhosa da honra e do prestígio da sua família. Mas eu tenho passado os últimos tempos a cuidar disso e já todos nesta casa, incluindo os servos, têm roupa que chegue e sobeje. Por isso, hoje, será um dia inteiramente dedicado ao lazer.
Syra prepara o meu penteado, quase uma obra de arquitectura que será motivo de conversa e inveja entre todas as minhas amigas.
Passa, de seguida à maquilhagem, que se quer refinada . Cinza, açafrão e antimónio para as pálpebras e pestanas, pasta de pétalas de rosa para as faces, suco de papoila para os lábios.
Faltam apenas as jóias. Hoje escolho um colar de âmbar e uns brincos de esmeraldas.
Vêm dizer-me que chegaram duas amigas, Sílvia e Flávia. Mando colocar uma mesinha e bancos no atrium, justo à piscina (1) e, sobre a mesa, figos, doces de pasta de amêndoa, pão doce e vinho muito aguado pois alguns maridos têm o hábito de cheirar a boca de suas mulheres quando chegam a casa para ver se desrespeitaram a lei que proíbe as mulheres de beberem álcool…
Conversaremos sobre nossos maridos, as suas carreiras, e aproveitaremos para ir sabendo coscuvilhices das famílias que têm jovens da idade dos nossos filhos, de forma a podermos saber que casamento patrocinar no futuro.
Depois iremos todas às Termas, esta tarde estão abertas às Mulheres.
(Continua)
(1) - a piscina, em Roma Antiga, não era um sítio de lazer, para nadar. Era um pequeno lago artificial onde se criavam peixes para cozinhar (daí o nome: piscis deu piscina).